22 de maio de 2009

Um Azevedo Constantino

Ele não pensou que seria daquela vez. Não achou que realmente aconteceria. Afinal, tantas vezes já o tocaram, dedilharam suas cordas, afinaram daqui e ajustaram de lá, mas no fim, ele sempre ficava. Não havia mais esperanças de sair dali, de ter seu próprio case ou coisa que o valha. Mas para sua surpresa, em anos de exposição na parede, finalmente escutou um “vou levar esse” direcionado a ele. Nada de ser pendurado na parede, agora ele ficaria dentro de uma capa de nylon preta e acolchoada.

O caminho para o novo lar não foi longo e a casa nova lhe parecia bem aconchegante. As pessoas eram simpáticas e faziam questão de pegá-lo com cuidado, analisar sua madeira, suas cordas e o pegavam pelo braço, pondo a certa distância dos olhos, para poder vê-lo como um todo, e faziam sua avaliação. Alguns diziam “Mas que preciosidade, não?”, outros preferiam “Essa madeira clarinha é linda e as tarraxas peroladas são um charme!”. Até que uma voz grave, que parecia saída de um baixo acústico, disse: “E pra que diabos você comprou isso se nem sabe tocar?”. A tristeza foi imediata. Então o compram para nada. Saiu do alto de uma parede para ficar enfurnado em uma capa negra. “Oras, comprei para aprender!”, disse uma voz que já lhe parecia familiar. E seu tom era de promessa.

Logo pela manhã, antes mesmo do café, ele era colocado no colo, dividindo espaço com uma revista de primeiros passos. Soava um dó, depois um sí, em seguida um mí. Mais adiante, depois de algumas infrutíferas tentativas, saiu uma sequência que lembrava, ainda que ao longe, uma música antiga. À noite, depois que colocava o filho pequeno na cama, era sempre a mesma coisa: revisar o que tinha feito pela manhã. O rapaz, que ele tinha aprendido que se chamava Pedro, era bem persistente e não de todo sem talento. Com o passar do tempo aprendeu muitas músicas, que tocava para os amigos nos almoços de domingo, nos fins de semana em Guarapari e para o filho Lucas, antes de dormir. A música Sonho de Menino, do Paulinho Pedra Azul, abria e encerrava a sessão de cantoria todas as noites. Era a preferida do menino. A mãe, Maíra, também tinha sua preferida, Frevo Mulher, do Zé Ramalho. Mas essa, Pedro ainda errava uma nota aqui e outra ali, mas ela não parecia se importar.

Era curioso, mas em momentos importantes, sempre estava ele ali, soando algumas notas musicais: no batizado da primeira afilhada, na primeira comunhão da sobrinha mais velha e na festa de noivado da cunhada.

Aos poucos, o “branquinho” – como fora apelidado por Lucas – foi se integrando aquela família. Antes um simples DiGiorgio, agora um dos Azevedo Constantino. Com o passar do tempo, a capa não era mais seu lugar. Revezava-se entre o sofá da sala e a cama de Lucas, que já não era tão pequeno e implorava ao pai que o ensinasse a tocar. Os domingos então, ganharam novo sentido. Não havia mais horas de cantoria, mas sim uma roda de viola rápida, e depois horas de aulas. Pedro sempre paciente, ensinava ao filho as notas mais simples, o “Parabéns pra Você” e o “Atirei o Pau no Gato”.

Lucas parecia mais talentoso do que o pai, e como tinha as tardes livres, dedicou-se mais a aprender. Fechava-se em seu quarto, esparramava-se em sua cama e com “branquinho” no colo, tocava tudo que o pai vinha lhe ensinando. Era uma briga com a mãe, que queria mais estudos e menos música. Mas não tinha jeito, o menino sempre acabava por escapulir de sua vigilância e ia tocar escondido Sonho de Menino. E mesmo sem perceber, ele e o menino se tornaram melhores amigos. Aonde um ia, o outro estava em seu calcanhar. O pai, sem poder fazer grande coisa, acabou por ceder o violão ao filho, e o tocava apenas quando o menino, agora com seus 14 anos, o deixava de lado.

Mesmo depois de alguns anos e várias cordas arrebentadas, “branquinho” continuava ali, firme e forte. E foi assim que Lucas se sentiu ao fazer a sua primeira serenata pra sua namoradinha da escola. Foram semanas ensaiando, aprendendo nota e lembrando compassos. E ele sabia, que mesmo sem poder falar, o violão lhe passava uma segurança. E deu certo. A música conquistou a primeira namorada, e as várias outras que vieram depois. Não mais com serenatas, afinal os adolescentes não são adeptos desses antigos jogos de sedução. Mas ele sabia, nenhuma moça resistia às suas músicas bem tocadas no violão. Lucas, no fundo, agradecia à “branquinho”.

Em um dia de festa, casa cheia, umas cervejas aqui, outras acolá, ninguém sabia onde estava ou se lembrava do velho violão. Nunca, em todos esses anos de “família”, tinha sido tão largado. O som tocava uma música alta. As crianças corriam pela casa em um interminável jogo de pique - esconde. Brincadeira vai, brincadeira vem, uma delas, ao tentar pular a cama para se esconder, derruba o violão e cai por cima dele. O braço quebrado estava preso ao corpo apenas pelas cordas. Quando se deu por conta, Lucas se irritou e seu pai sentiu o peito apertar, afinal era o velho companheiro que estava em pedaços. Depois de levá-lo ao conserto, tinham até medo de usá-lo e em um movimento mais brusco partir-lhe de novo.

Em tempo um pouco maior do que um piscar de olhos, o velho violão viu-se em uma igreja. Ele sabia o porquê de estar ali, só não sabia se Lucas conseguiria fazê-lo. A noiva, ao fundo esperava para entrar, Lucas, no altar, com violão em mãos, tentava se acalmar para cantar a música que tinham combinado. Era, com certeza, o fato mais importante na história da família. Maíra não segurava as lágrimas, Pedro se recordava de quando estivera no lugar do filho e o padre parecia impaciente com todo aquele atraso. Por fim, ele começou a ser dedilhado e em segundos já soava uma melodia conhecida, com soluços ao fundo.

Na semana em que ficou longe de Lucas, o velhote – Lucas já não o chamava de branquinho desde quando se partira – foi para casa de Pedro. E pode recordar como era ter aquelas mãos dedilhando-o outra vez. Frevo Mulher já não era mais tão ruim assim. Revezá-lo foi a solução que eles encontraram, mesmo com o filho morando em outra casa. Comprar outro violão? Não, obrigado.

Pouco mais de um ano depois, velhote foi esquecido de novo. Todos estavam na maternidade. A família estava crescendo, e ele não via a hora de conhecer o mais novo membro. Quando todos voltaram para a casa de Lucas (Maíra fazia questão de cuidar do neto, Lucas queria estar ao lado da esposa todo o tempo e Pedro não queria estar longe de ninguém) foi um Deus nos acuda. Eram pais e avós de primeira viagem. Mas Pedro sabia bem o que fazer. Chamou o filho em um canto, longe de todos, pegou o violão com todo cuidado e estendeu para o filho:
-Toma, algo me diz que o pequeno também vai gostar de Sonho de Menino...



'E que puder entender, que escute!

2 comentários:

  1. você vai escrever um livro e eu vou ser escravizada numa redação. FATÃO!

    huehueuehuehue

    :***

    ResponderExcluir
  2. concordo com a nath ai em cima.
    só um desabafo:
    sempre quis tocar violão!!
    tinha um violão aqui em casa q semre pegava ele escondido e focava tocando!
    um desastre!!
    uahsuah
    Mari!
    já disse e falo de novo: adoro ler vc!
    =)

    ResponderExcluir